O coração partido

De pé à porta, ela vasculhou a sala cheia, apenas com os olhos, por um lugar.

Eu, que então contava quatorze incompletos – mas já ignorava os cinco dias faltosos na contagem -, tinha no peito aquele sentimento que acomete os jovens descuidados. De tanto ler estórias de heróis, via em toda donzela aquela princesa em apuros; e a princesa agora estava à porta, com seu dilema de sentar, e eu estava com o coração palpitando pela doçura da cena; ela abraçava seu fichário com tanta ternura; e sorria tão serenamente à espera da permissão para adentrar, que eu nem me dei conta de que só havia um lugar na sala, que era ao meu lado, e fiquei a torcer que ela não se sentasse em nenhum outro lugar; só assim eu poderia… Bem… Não sei o que eu poderia fazer. Eu era muito tímido.

Como poderia unicamente ser, ela se sentou ao meu lado. Eu tomei aquilo precocemente como fortuna e me pus a analisar a colega nova. Pra falar verdade todos ali eram novos colegas. Era o primeiro dia de aula, e numa escola nova.

Dando por falta do meu lápis eu lhe pedi algum. Prontamente tinha na mão um curioso modelo: Considerando a posição da escrita, a parte de cima era em forma de um coração, e achei interessante, porque era aparentemente redobrável.

Passei a tentar escrever o que estava na lousa. Digo tentar porque a garota sentada logo a frente me contava o interessantíssimo caso de como sua avó dava comida aos gatinhos usando uma seringa e depois os ninava. Pra falar a verdade ela fazia a narração em parcelas, provavelmente acreditando que assim a estória se tornaria mais interessante; então de cinco em cinco minutos ela me fazia um teste cardíaco básico se virando repentinamente e falando de avós e gatinhos.

A forma do lápis por um momento me fez distrair das atenções na estória e na beleza da garota ao meu lado – depois descobri que eram amigas, ela e a contadora de causos – ,e passou pela minha cabeça a ideia idiota de que seria legal devolvê-lo com outra forma. Era época em que os famosos lápis HB de ‘borracha’ cor azul-água faziam sucesso e não me admirei com o pensamento absurdo de um grafite dobrável (nem sei se isso existe); sei que tentei fazer outra forma, não sei que forma; talvez um cachorrinho ou um Chapolin Colorado; sei que na tentativa parti o lápis da menina.

Parti o lápis no local do coração, porque era onde tencionava redobrar, parti então o coração. No momento pensei até em dizer que a compraria outro, talvez mais bonito.

– Mas você quebrou o lápis que o André deu pra Alice! – Disse a narradora de estórias de velhas e felinos ao se virar bruscamente, dizendo-me ao mesmo tempo o nome da linda menina e de seu provável namorico.

Bem sabia que agora não poderia restituir-lhe o lápis, muito menos o coração partido. E no barulho desse ultimo sobressalto Alice olhou pra minhas mãos. Acho que nem se eu a comprasse mil lápis e mil Andrés eu perderia a culpa que senti ao ver aqueles olhos mareados e o sorriso mentiroso:

– Tem problema não, amanhã eu compro outro.

Coracao

 

lucastamoios

 

One thought on “O coração partido

  1. Tive a oportunidade de ler um de seus escritos a um tempo atrás, e reforçando o que pensei, mais uma vez me encantei com seu texto, percebendo o quão talentoso você é. Parabéns, com detalhes não menos importantes, o seu texto ganha força e prende o leitor ao desfecho da obra. Fico feliz quando vejo que alguns dos que conheço gostam de escrever, porque “escrever” é abrir a janela e ver ao alcance a extensão de tudo que aos olhos de outros está distante.

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