O telefone tocou cedo e acordou Tomáz.
– Ô, Tom, ficou um negócio pendente de ontem, tem como ‘cê chegar mais cedo pra ajudar a gente?
O pessoal do turno da noite sempre fazia bagunça, tinha se acostumado. Levantou e vestiu seu terno rapidamente, passou no café antes de ir pro Escritório. Lá pegou a papelada e seguiu para o hospital. Foi a pé porque faz bem pra saúde, sabe como é, viver mais. Mentira. O hospital era quatro quadras além.
Quem ficou feliz foi a família do rapaz.
– Ah, foram as orações, foi milagre!
Aquele tipo de comentário arrancava um sorriso dente a dente da cara do Tom, que ficava olhando satisfeito pro serviço. O pessoal do noturno às vezes bebia, às vezes era o sono; acontece que volta e meia chegava alguma obra mal feita. A maioria dava um trabalho lascado, ou custava muito pro escritório – em muitas vezes custava uma demissão. Dessa vez foi simples.
Aproveitou pra andar mais um pouco voltando pro Escritório, e no caminho encontrou seu Ernesto, cento e poucos anos.
-Ei, seu Ernesto, me acompanha, por favor?
Deus ajuda quem cedo madruga. Era coisa pendente de dois anos para mais, e nem era serviço seu. Iria ganhar um bônus por aquilo, certeza, porque ninguém achava o velho. Deixou seu Ernesto na recepção e foi direto no setor executivo.
-Carlinhos, vai à recepção que eu tenho um presente pr’ocê lá, cara, depois ‘cê me agradece.
Seguiu direto pro Setor de Controle de Fluxo e pediu sua lista.
-E desconta um aí do Hospital São Miguel, quarto 19, que foi extra.
Ê, azar! Primeiro da lista era uma menina de quatro anos. Odiava trabalhar com criança; sempre demorava mais e era mais difícil. Olhou os outros da lista e viu um nome de um periódico seu. Pelo menos aquilo iria fazê-lo ir pra casa menos nervoso.
Aproveitou o embalo e continuou a pé. O tal serviço era num bairro central, quarenta minutos a pé; pra antes do almoço, se saísse logo. Na rua uma fanfarra de meninos tocava trompete e bumbo sem parar, o sol já começava apontar e o uniforme preto não ajudava. Sentou num ponto de ônibus e comprou um picolé.
-O calor hoje tá matando, hein? – O vendedor deu um sorriso e foi atender outro freguês.
-Nem tá tanto assim…
Mas o homem nem ouviu mais. Tom também estava era pensando no caso da menina. Chamava-se Isadora, provavelmente com o apelido de Dorinha, gostaria de bonecas e de cãezinhos…
-Geni, meu bem, quero que olhe a ficha de uma cliente, por favor – O telefone chiava um pouco e Tom teve de
repetir outra vez – Como? Fala mais alto que ‘tá cortando.
-Foi o pessoal da Previsão que mandou essa daí ontem, Fred não quis pegar, então tá atrasado.
-Tá bom, brigado.
-De nada.
Era melhor ir à previsão ver isso antes. Quando era criança errado na maioria das vezes não dava tempo de resolver como o que fizera mais cedo, e as consequências futuras eram mais graves.
-Tomáz Tavares, Executivo do Escritório Central.
O porteiro pediu o cartão e ele lhe entregou prontamente. Foi direto no Fluxo da Previsão, aproveitando que já conhecia uma atendente.
-E aí, gata! Quanto tempo eu não te vejo!
-Que você quer? Só vem aqui quando quer alguma coisa… – Respondeu a mulher num tom que ficava entre a
rispidez, o divertimento e o tédio.
-‘Tô precisando conferir o pedido de execução pra Isadora Gabriele Caxias.
-Um minuto aí… Hoje o sistema tá lerdo que só.
-Rola aquele cinema sábado à noite?
-Pra você desmarcar de novo um dia antes? Prefiro sorvete e novela… Achei! – Deu um sorriso exultante – Confirmada execução.
-Ahh… – Fez uma careta de repulsa – Tem como você olhar o motivo?
-Sabe que a gente não pode fazer esse tipo de coisa.
-Sei que você é a atendente mais bonita do fluxo…
-Você não vai me levar com sua conversa. O assunto aqui é sério.
-Você me dá o motivo e eu levo sorvete pra você sábado à noite na hora da novela.
-Ai! Só vou olhar porque você já está enchendo… e o sabor é chocolate – Deu mais uns dois cliques e outros toques no teclado – Ela está marcada como Execução Indireta Preventiva…
-Como assim?
-O relatório aqui diz que ela se casa com um traficante e morre assassinada, sua morte desencadeia uma guerra
entre gangues rivais que leva à morte mais de duzentas pessoas.
-Então essa daí é pra evitar mais serviço futuramente…
-Isso, garotão.
Resolveu pegar um táxi, porque o sol já estava a pino e o calor era demais. Pensava em como faria tudo o mais rápido e indolor possível. Quando era algo avisado em longo prazo era mais fácil planejar, ou então quando se encontrava por aí um sujeito bacana e resolvia se fazer um favor por ele, como era o caso de Valmir, seu periódico.
Periódico porque era um serviço constante, tinha que ser visitado pelo menos uma vez por semana. Dava muito mais trabalho, mas era um serviço primoroso. Seus periódicos tinham lhe dado duas promoções e um aumento de salário, além de notoriedade no escritório. A maioria dos Executivos preferia serviços rápidos e fáceis; uns eram preguiçosos, outros descuidados. Pra falar a verdade a maioria era dos preguiçosos. Por causa deles que existem as mortes sofridas.
Ultimamente Tomáz tinha quatro periódicos, que lhe custavam pelo menos 5 horas semanais. Valmir ele tinha encontrado num dia de serviço, ajudando num acidente. Pra falar a verdade na hora tinha ficado moído de raiva do cara, que lhe dera o dobro de trabalho pra levar as vítimas, mas depois pensou direito e viu que valia a pena aquele sujeito. Durante dois anos, ia todos os dias ao café que passou a frequentar por causa dele e esfregava pó de Cerelha na sua xícara. Agora era só ir a casa dele e colocar uma dose um pouco maior na caixa d’água. Não ia matar todo mundo, só aqueles que vinham ingerindo há muito tempo em doses homeopáticas e ficavam sensíveis à droga. A Cerelha era magnífica.
Entretanto, Isadora era um caso mais sério. Viu que o táxi se aproximava do local e resolveu descer e continuar a pé, não tinha lhe vindo nenhuma ideia mirabolante de como fazer um serviço limpo com a garota. Precisava pensar.
-Ô, rapaz! Quanto tempo! Saudades demais de você!
Era um antigo vizinho, tinha pra mais de doze anos que não se viam depois que o Tom se mudara.
-Tom, você não envelheceu nada em dez anos, cara!
-E pra compensar ‘cê ‘tá com uma aparência até mais nova, Beto! – Tom deu um abraço caloroso no amigo,
amigo como sabia que nenhum Executivo poderia ter.
-Que você faz por essas bandas!?
-‘Tô morando por aqui, cara, quer almoçar lá em casa?
-Ô, Beto, não dá… ‘Tô com um serviço atrasado ali já…
-Quê isso, Tom, tem mais de dez anos que a gente não se vê e você não pode enrolar um pouco um serviço?
Ainda faz aquele monte de hora extra?
-Mais ou menos… É que… –Coçou atrás da orelha enquanto o amigo lhe dava um tapa no ombro.
-Eu não aceito um não como resposta! Vamos andando, moro aqui perto.
Cedeu porque precisava de tempo, precisava de tempo pra pensar no problema da garotinha. Tinha Raspa no bolso, matava em poucos minutos. Seus sintomas eram associados à parada cardíaca, por mais que fosse estranha a morte de uma garotinha com parada cardíaca, o problema mesmo eram as dores que a droga causava antes de matar.
Resolveu ficar com a ideia da Raspa enquanto nada melhor lhe viesse. Pelo menos não haveria sangue e pessoas tão traumatizadas ao redor.
-Chegamos, Tom.
Alberto pegou as chaves e abriu a casa. Entraram e Tomáz sentiu um cheiro gostoso vindo da cozinha, tinha bacon. Adorava bacon. Quem não gostava de bacon? A sala estava bagunçada, cadernos com desenhos por toda parte. Desenhos de unicórnios, castelos, e desenhos de carros, o surpreendente foi um desenho de um homem todo de preto. Terno abotoado, camisa social e gravata pretos. Cabelo preto curto. Sentiu um frio pela espinha.
-Desenho bom pra uma criança de quatro anos, né?
-Não sabia que você tinha filhos…
-Tenho só uma garotinha… – uma menina irrompeu correndo pela sala e parou subitamente de olhos arregalados e úmidos – Aí está ela, a menininha do papai! Filha, esse é um amigo do seu pai… Tom, essa é Isadora.