A mala

Olhei para aquela maleta no canto do meu pequeno cômodo e não resisti às fortes lembranças que ela me revolvia. Sentei à beira da cama e chorei até soluçar. Eu começara uma pequena arrumação no meu apertamento; aquele bicho da limpeza que às vezes nos incorpora, e nos faz jogar fora coisas velhas e sem utilidade; e a cada quinquilharia uma lembrança, lembrança de uma vida que foi e não me levou junto.

Outras coisas eram tão antigas que a princípio eu me recusava a jogar fora, mas o bichinho estava sempre lá e eu acabava cedendo. Eu estava sempre cedendo, já tinha algum tempo que eu não resistia a nada mesmo.

Da mesma forma eu não resisti ao choro, não resisti à mala. Foi há muito tempo que começou a história daquela pequena valise de couro, que tinha o charme de uma boa mala de negócios, e apesar disso toda discrição. Eu ainda era um garoto, entrando na adolescência, e meu tio, um homem de meia-idade, brincalhão, sempre criticava minha postura taciturna. Talvez se eu tivesse ouvido meu tio e rido mais, minha vida não tivesse perdido o sentido.

Ele adorava pregar peças, em qualquer membro da família; algumas brincadeiras eram mais inteligentes, e mesmo os mais espertos caíam, outras eram mais simples, mas os outros fingiam ser tapeados simplesmente pela piada e pelo riso. Eu nunca caí em nenhuma dessas piadas. Ele criticava, mas criticava sem achacar; eu ouvia silencioso e depois dava de ombros, mas mesmo assim ele persistia. Persistiu até que perdeu a graça, e me deixou de fora de todas aquelas pegadinhas que botavam a casa abaixo de tantas gargalhadas. Eu, que gostava de ler, às vezes achava ruim aquela barulheira toda que ele fazia quando chegava, então colocava o som que eu tinha no último volume, e como eu não tinha muito o costume de fazer isso, ele e sua platéia logo desconfiavam e paravam a baderna; só assim eu podia voltar novamente para o silêncio da minha alcova.

Um dia ele veio até mim com a tal maleta. Primeiro ele chegou em casa com um olhar meio desconfiado, uma cara séria; tão excepcionalmente que quando vi fiquei preocupado. Pedi para que ele se sentasse em um sofá e sentei em outro. Pela forma como ele olhava vi que era algo sério e sigiloso, então o chamei para meu quarto.

– Olha, Maro – meu apelido de criança, na verdade meu nome é Mário, mas eu tinha um irmão mais novo que não conseguia terminar o nome, daí ficou pra todo mundo – Eu sei que você nem vai muito com a minha cara…

– Que isso, tio, tem nada não…

– Eu sei, rapaz, eu sei que você não gosta das brincadeiras! No final eu só queria quebrar esse gelo seu… Mas enfim, não ‘tô aqui pra falar disso, eu preciso de um favor seu.

– Pode falar.

– Na verdade eu tenho muitos amigos que poderiam fazer isso, mas confio mais em você, sei da sua discrição, você é a única pessoa que pode guardar essa mala pra mim. Preciso que ela fique escondida até eu voltar da França, Mário, e não olhe, por favor, não olhe!

Ele me agradeceu e, ainda soturno, saiu sem sequer despedir da minha mãe. Peguei a valise e pensei por um momento em olhar o que tinha escondido, o que fazia tanto mistério, pensei até que pudesse ser algum ato criminoso do meu tio. Será se ele teria coragem de fazer algo assim? E será se ele fizesse algo assim teria coragem de me envolver? Se fossem drogas ou armas, por exemplo, eu poderia ser preso! Lembrei-me do seu semblante preocupado e resolvi esconder o melhor que pudesse aquele objeto. Seguiria à risca minha incumbência.

Naquele momento eu a escondi enterrada no quintal, abaixo da amoreira. Minha mãe pensou que a terra revirada era coisa do cachorro e deu uns tapas nele; eu acobertei minha missão com pesar por pensar que isso custou uma surra no meu amigo, mas eu não podia dizer que era coisa minha pois isso revelaria o motivo; então depois agradeci e pedi desculpa ao Paquito por aquilo e lhe contei a história. Ele também não contou pra ninguém e levou nosso segredo para o túmulo.

Ele morreu bem quando eu me mudei para fazer faculdade e, sempre lembrando do segredo do meu tio, passei por um dilema: levava ou não comigo? Deixar significaria correr um risco, e se a encontrassem? E se acimentassem o quintal? Não havia mais o Paquito para defender nosso misterioso patrimônio, então resolvi levar, mesmo correndo o risco de as pessoas questionarem aquele artefato. E foi exatamente o que aconteceu, e os veteranos da república, que revistaram todas as nossas coisas, ficaram curiosos por descobrir o que tinha naquela mala.

– Solta isso daí, cara, pode brincar com o que quiser meu, mas isso daí é sério.

– Ô, bicho, fica quieto aí.

Tive que arrumar um pensionato por causa do soco que dei na cara dele. Quebrei-lhe um dente, e além de custar minha morada, custou uma reputação que me fez isolar ainda mais das outras pessoas. Antes de concluir a faculdade de História eu conheci Angélica, que apesar do nome não tinha nada de angelical. Mas mesmo assim foi por ela que me apaixonei.

Ela fazia Direito, e só se formou dois anos depois de mim, que foi quando nos casamos. Ela respeitava muito minha privacidade e meu silêncio, o que fez com que o relacionamento durasse até mais do que qualquer um apostasse. Mas apesar de todo esse respeito, um dia, enquanto pegava algumas roupas do guarda roupa para a caridade, deparou com a bolsa e indagou.

– Mário, tem algum tempo que a gente se conhece, apesar de eu respeitar seu isolamento a gente combinou de nunca esconder nada um do outro. Que que é isso que você esconde, hein?

– Não posso te contar querida…

– Mário, eu não gosto disso, eu não gosto desse tipo de segredo… Você sabe que eu não contarei pra ninguém!

– É sério, Angélica, é algo que acima de todas as outras coisas, eu não posso lhe contar – lhe falei com o mesmo tom calmo de antes.

– ‘Tá certo! – ela deu um passo duro e um olhar mais duro ainda. Mas não pude ceder, era algo que devia ao meu tio.

Ficamos sem nos falar por quase um mês, até que ela veio até mim pedindo desculpas e falou que tentaria respeitar minha vontade. Viu que pelo tanto que resisti, devia ser algo realmente sério e nunca mais me incomodou com o assunto. Ainda estávamos no início do relacionamento, então foi apenas um pequeno problema resolvido rapidamente, pelo menos mais rápido que os tantos outros pelos quais passamos.

Mas nesse momento eu também já me questionava sobre aquilo, o que seria, porque eu ainda a guardava. Meu tio tinha ido pra França há mais de dez anos e raramente entrava em contato. Uma vez pelo telefone tentei lhe falar da mala, mas ele apenas fez um silêncio sepulcral e respondeu “Estou muito decepcionado com você, meu filho”. Eu nunca mais lhe questionei, resolvi apenas guardar o segredo e também respeitar o segredo do meu tio, como gostava que minha esposa respeitasse os meus.

O tempo passou e eu tive dois filhos, e o primeiro até encontrou a valise uma vez e tentou abrí-la, mas por sorte eu vi a tempo e tomei dele. Pela cara que eu fiz ele se espantou e saiu correndo, nunca mais mexeu nas minhas coisas. Mesmo assim eu comprei um cofre e a pus lá dentro, junto com as outras coisas que comumente se põe em cofres.

Foi bem nessa época que meu tio morreu. Dizem que ele morreu de uma vez, sem sequer sofrer, não foi por doença, não foi acidente. O coração simplesmente parou. Os amigos que estavam com ele no bar riram da queda, e ficaram pedindo pra ele parar com a brincadeira, já que o bar estava cheio de gente. Talvez se meu tio não fosse tão brincalhão ele tivesse recebido um socorro rápido e ainda estivesse vivo, ou talvez não. Acontece que seus amigos negligenciaram a suposta brincadeira por mais de um minuto, conhecendo o grande pregador de peças que era o homem. Só quando viram que não respirava foi que perceberam que talvez aquilo não era um truque. O socorro chegou e o homem já estava morto.

Fiquei meio triste com a notícia, mas sua morte nem me abalou tanto, já que não tinha tido muito convívio com ele, o que me fez parar pra pensar foi o que eu faria com a tal mala. Dividido entre a curiosidade e a lealdade, resolvi guardar mais aquele segredo. Era possível que meu tio tivesse designado alguém para pegar a bolsa comigo mesmo que morresse. Então resguardei por mais algum tempo aquele segredo.

Não muito tempo depois me separei, e isso foi um pouco recente. Meu filho mais velho se envolveu com drogas – o que outrora descobrira a mala – e minha mulher começou a ficar muito nervosa. Nossa família se desestruturou quando esse filho cometeu suicídio. O mais novo não aguentou de tristeza – pois eles eram muito ligados – e foi morar em outro estado, onde ainda trabalha como contador. Eu e minha mulher já não nos tolerávamos há muito, então foi apenas a gota d’água. Uma grande gota, na minha opinião.

Estou nesse pequeno apartamento há dois anos, trabalho como professor e não consigo sustentar nenhuma casa maior, também não tenho muito ânimo. Podes pensar que sou um madraço, mas eu simplesmente acho opacas todas as coisas que as pessoas usam como base de suas vidas, realmente não tenho necessidade de nada mais que solidão. E é nesse estado que me encontro, e penso em toda essa história novamente enquanto olho para a maleta em meu regaço.

Sei que deus – se ele existe – não me punirá por resvalar nesse mistério, pois há muito não vive o dono da mala, e depois de sua morte ninguém veio requerê-la. Por um momento penso que possa ter sido um teste de lealdade para com ele, que agora morto não questionaria mais minha índole; e encorajado por esse sentimento eu destranco as duas presilhas laterais. Um calor sobe pelo meu pescoço, é um mistério que permaneceu em minha vida por quase quarenta anos. Levanto mais um pouco a tampa com o coração a palpitar forte. Uma explosão.

Um pó preto é expelido por um sistema altamente requintado da valise, e me suja completamente, fico irado, por ver que tudo que eu limpava estava agora coberto daquele estranho pó. num compartimento lateral tinha um bilhete que assim dizia:

Aha, meu sobrinho, te peguei!
Sabia que você não resistiria de curiosidade, mas é algo bom,
pois faz com que a brincadeira funcione! Espero que não se zangue,
no final só queria ver se te fazia sorrir, sorrir é a coisa mais
importante da vida! E no fundo da mala tem aquele vinil dos Mamonas
Assassinas que você tanto falava, espero que goste dele!

Um abraço, garoto!

– Sim, meu tio, você me pegou… Você me pegou – Falei em voz alta com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos.

cartagena-de-indias_l

 

lucastamoios

 

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