Sombra do Medo

Ele sentiu aquele olhar atravessando suas costas durante toda a aula. Naquele dia era algo diferente, era algo mais malicioso que sempre. E o medo aumentara quando no horário do lanche não lhe levaram o dinheiro. Queria não tremer, mas suas pernas tinham adquirido o hábito. Cruzou-as de maneira pouco masculina na intenção de disfarçar o tique ansioso, escorregou a mão pelos cabelos longos mal-cortados de tesoura por sua mãe no mês retrasado.

Era o último aluno da turma, perdia até para os drogados que sentavam no fundo e falavam grosserias a aula inteira. Sua mãe lhe levara a alguns psicanalistas, psiquiatras e até mesmo em algumas pessoas especializadas em entidades metafísicas, mas, tirando a dona do centro espírita, todos lhe diagnosticaram como uma pessoa normal. E continuou a ir à escola como todos os outros, e repetiu a quarta série, repetiu a oitava agora, e as outras passou empurrado.

– Carlos, poderia ler pra gente esse trecho do Machado de Assis ressaltado no livro, por favor?

-C-Claro… – Seus óculos escorregaram pelo nariz e debruçaram sobre o livro, pegou-os desajeitadamente e os pôs meio tortos, procurou um pouco onde deveria começar a ler, olhou para o professor. Procurou novamente. Parecia não haver nada sobre Machado de Assis naquela página, mas sabia que era tudo como dissera o psiquiatra, questão de calma. Fechou os olhos. Respirou fundo três vezes. Abriu os olhos e começou novamente a busca pelo grandiosíssimo Machado de Assis. Albert Eistein; Segunda Guerra; Hiroshima…

– A gente ‘tá na aula de literatura, Carlos, você não vai encontrar muita coisa útil para essa aula de hoje em um livro de história – Advertiu o professor.

Alguns alunos tentaram abafar o riso, Carlos sentiu o olhar de ódio se tornar um olhar de repulsa e sentiu-os rindo. Lágrimas tentaram encontrar saída pelo labirinto da sua alma. Não hoje. Não hoje. Já não conseguia ler o livro de literatura, via tudo embaçado. Fechou os olhos novamente e tentou se concentrar. A mesma paciencia que sentia vir do seu professor era o tamanho da impaciencia dos seus colegas. Olhou para frente e viu uma menina debruçada no encosto de sua cadeira procurando interessadamente pelo trecho De Machado que em breve ressoaria de seus lábios. Enfim, os encontrou:

-Tra-trata de… – olhou todos ao redor, engoliu um algodão – saborear a vida… e, f-f-fica saben…do, que… a pior filosofia é a do chor-choramingas… – já estava quase gritando.

-Tudo bem, tudo bem, já chega – o professor colocou seus óculos – e fica sabendo, que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca…

O resto da aula foi quase eterno. O pior seria seu professor indo novamente em sua casa e, acreditando que estava ajudando alguém, acabaria por foder novamente com mais um semestre da sua vida. Iria conversar com ele ali mesmo, esclarecer aquela situação constrangedora, e se houvesse de lhe dar alguma ajuda, lhe daria por ali mesmo. Não poderia falar com seu pai, ele não conhecia seu pai, ninguem conhecia seu pai. Ele tinha muito medo dos meninos grandes da sua sala. Mas tinha muito mais medo do seu pai, muito mais medo de uma palavra do seu pai.

Seus olhos cheios de água mostravam sua vulnerabilidade, fragilidade, seu cachorro tinha morrido, seu melhor amigo durante mais de seis anos. Segurava-o nos braços. Seu pai passa por ele e empurra o animal morto para o chão. “Sua bichinha de merda, para de chorar por causa dessa porra velha fedorenta.”

Abriu os olhos e acordou dos devaneios. Seu professor saíra. Todos tinham ido embora. Correu para o estacionamento e viu que o carro do homem ainda estava lá. Caminhou e encostou na porta, não teria como ir embora sem uma entrevista com seu tutor.

-Vai fazer o que escorado nesse carro, ô idiota, lamber? – Heitor era o maior aluno da sala. Era, como Carlos, atrasado dois anos. Era dele o olhar de ódio que sentira, era como se sua pele lhe dissesse aquilo.

– Se você não responder eu vou abrir e fechar sua boca com socos até ela falar sozinha.

-Vou p-pedir pro professor n-não ir… não ir na minha casa… não falar com meu pai. – Aquele olhar desafiador derretera qualquer tentativa de auto-defesa, não conseguiria dizer outra coisa, não conseguiria mentir nem se soubesse.

-Puta. Que. Pariu. Você é o cara mais idiota que eu já vi na minha vida mesmo, não tem salvação, né Beto… Caralho… Esse professorzinho de merda já foi na minha casa me esculachar e eu não ‘tava nem aí, agora ele vai falar com seu papai porque você é um tolo que não sabe ler e você ‘tá com medo? Eu tenho certeza que seus velhos já tem noção do tanto que você é burro! ha-ha-ha!

Aquilo não lhe doía mais, já acostumara a palavras daquele tipo. Os socos é que doíam. Tinha a teoria de que muitos daqueles garotos se tornavam tão fortes de tanto treinar em seus sacos de pancadas. Não gostava de ser um saco de pancadas. Mas não tinha jeito.

Uma mão muito dura lhe atingiu pela terceira vez o estomago e Carlos começou a sentir uma enorme vontade de vomitar, uma cotovelada no olho e um chute da orelha esquerda. Sentiu que começava a perder os sentidos aos cinco minutos de espancamento.

– Acho que tem alguém vindo, Heitor, melhor a gente ir.

– Pega o moleque ‘cês dois e leva ele pro buraco.

Descobriu que buraco era o nome de um lugar onde os garotos se juntavam para beber e fumar escondido, atrás do colégio, dentro de um prédio velho. Deveriam ter arrombado para entrar ali pela primeira vez, e de tão abandonado resolveram fazer a própria fechadura para aquele lugar lúgubre.

Alberto o jogou no chão e Sávio sentou em cima de sua cabeça. Outro pontapé. Mais outro. Sua cabeça parecia que ia estourar. Não via nada, as cores começavam a se misturar em sua visão como se fossem óleo, fraquejava, como se estivesse há algum tempo sem comer. Abria os olhos, mas nada via. Beto levantou e então pode respirar, e entendeu a risada que os garotos deram. Heitor colocava para fora seu piu… espera, não… como era o nome mesmo que os garotos davam para aquilo…

-…Caralho! Você vai chupar o meu caralho! Ha-ha-ha!

Tentou se levantar e afastar-se de costas, mas caiu e machucou o braço mais um pouco; o folego lhe faltava e seus olhos lacrimejados já não lhe mostravam mais nada quando duas mãos lhe agarraram o queixo e aquilo lhe entrou na boca. Conseguiu sentir ódio e começou a fechar a boca. Tinha que fazer com força, tinha que machucar. Nem que morresse. Começou a fazê-lo e tomou um belo soco do lado do pescoço.

– Acha que eu já não sei como essa merda funciona, seu débil-mental?!

Enquanto os dois comparsas lhe seguravam Heitor lhe entrava por trás. Não seria necessário que lhe segurassem. Não teria forças mais para sair. Os garotos se revezaram, indo mais de uma vez, cada. A vida parecia opaca a Carlos quando enfim lhe disseram para ir embora. Tentava se esconder na rua, caminhava pela sombra, como sempre lhe aconselhavam. Viu um homem da lei. Lembrou-se de ver coisas como a sua nos filmes, e as pessoas iam na polícia ou em algum mocinho para reclamar, era assim mesmo, ele não tinha herói, iria com a polícia.

Parou no meio do caminho. Vergonha. Aquele ali era homem, iria rir dele, mesmo que lhe ajudasse, daria aquele risinho abafado que todos lhe davam de gorjeta. Tolerava apanhar, tolerava o ódio, e até mesmo que lhe virassem a cara, mas não tolerava aquele desprezo superior. E no mesmo momento sentiu ódio, um ódio enorme daquele homem fardado. Sentiu que devia matá-lo ali mesmo, e sentiu ódio daquela mulher que com ele conversava, porque ela riria dele também, e pior, ficaria com pena quando ele começasse a chorar.

Então correu o quanto pôde, o quando seus pulmões aguentavam, o quanto sua alma clamava. Queria se esconder, queria que tudo acabasse.

Entrou em sua casa e ouviu o som da voz do seu pai.

-Carlos?

Correu pelas escadas antes de ser visto, mas acreditava que não conseguiria mais despistar aquele arguto homem.

-Eu não acredito que você apanhou de novo na escola – Ele gritou lá de baixo enquanto o menino soprava seu último fôlego quarto adentro e trancaa a porta. – Abre essa porra agora que eu quero ver! – Achou que a maçaneta fosse ceder tamanha força de seu pai – Eu quero olhar pra sua cara de boiola e terminar de quebrar sua fuça. Quando é que você vai virar homem e bater de volta?

Carlos sentiu o cheiro de alcool pela porta e viu que seu pai saíra, mas era para buscar a chave sobressalente. Usou suas últimas migalhas de força para arrastar o guarda roupa para a frente da porta, e depois a cama, e depois deitou nela. Chorava quando seu pai voltou, não conseguia esconder os soluços. tentava abafar com o travesseiro mais era algo mais forte, era um urro preso na garganta. Sua cabeça doía, assim como sua barriga, seu ânus, e todo o seu corpo. Mas sua alma estava despedaçada.

– ‘Tá espertinho agora, né. Tem importância não. Uma hora você sai daí. Aí então você vai aprender a lidar com gente valente. Vou te mostrar quem que você tem que ter medo, seu cuzão!

A última ofensa teve sentido pela primeira vez na vida. Isso doeu, mas a dor vinha ficando opaca. Uma hora depois e já começava ver as coisas com mais clareza, com um rancor mais refinado. Destilara o ódio do ódio. Subiu em seu guarda roupa e pegou a arma de choque que uma vez achara na rua. Sentiu que aquilo era obra que algum anjo, mau ou bom; aquilo tinha um propósito. Pôs no bolso e escorregou pela janela do quarto se engalfinhando pelo muro até o chão, como já era acostumado. Entrou sorrateiro no quarto do pai, onde este dormia ébrio. Retirou a arma. Esperou. Quando viu que seu algoz não acordaria. foi direto na gaveta da escrivaninha, do lado da besta. Abriu, conferiu o pente. Cheio.

Puxou o cão. Pôs na cabeça do pai. Ergueu a cabeça, saboreou o momento. Seus olhos vidravam ódio e terror. Você vai comer desse, mas vai ser sóbio. Guardou a arma e foi pro buraco.

Foi fácil, entrar. Foi fácil ver aquele sorriso do Heitor se deliciando com o momento. Sem entender do que se tratava ele caminhou em direção a Carlos. Mais rápido, entretanto, Beto se lançou sobre o garoto, levando uma descarga de dez mil volts. O garoto ainda segurou a arma sobre a barriga do atacante uns dois segundos, antes de se virar para o segundo. Heitor também caiu bem rápido se contorcendo. Não viu o terceiro, não importava. Todos teriam seu tempo. Olhou nos olhos do seu verdugo, sentiu o medo que dali irradiava. Eram tão meninos, os dois…

Retirou a arma e viu Heitor gemer um ‘não’ quase inaudível enquanto por seus olhos corriam lágrimas de medo. Sua vida se acabaria ali, sua mãe choraria seu velório e seus amigos diriam que ele fora um bom menino. Era o ponto final aos quinze anos. Carlos percebeu que aquilo que parecera se quebrar dentro de si, de uma maneira irreparável, ainda não o fora, o dedo no gatilho daria conta disso. Era só apertar. Puxou o cão da arma. A mão suada foi mais perto da cabeça do valentão, que fechou os olhos e começou uma oração silenciosa de onde só se via a boca mover. Seu amigo atrás contemplava tudo imóvel, mesmo sabendo que seria o próximo, não conseguia se mover. O cano da arma pressionou a têmpora do estuprador um pouco mais.
Só o perdão pode salvar sua alma.

Aquele olhar vazio contemplou o outro olhar, choroso, por alguns segundos. Foi uma eternidade, na verdade. Carlos pôs a arma no bolso sem desviar o olhar. Saiu do prédio, foi pra casa sem olhar pra trás e nunca mais chorou.

 

lucastamoios

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *