Moacir-dos-Cães

O calor já queimava a testa e ainda eram seis da manhã. O jovem de cabelos escuros bagunçados já tentara duas vezes cada chave e nenhuma entrara, mesmo aquele sendo o chaveiro correto, às vezes só não entrava direito na primeira vez. Claque. O portão abriu com um estalo.

Desde novembro do ano passado tinha comprado seu carro, mas não coubera na garagem dos seus pais. Teve então que ver se alguém na vizinhança lhe alugava um espaço. Não achou que iria encontrar até que Moacir-dos-Cães ficou sabendo e lhe ofereceu. Ofereceu. Sequer tinha lhe falado, achou estranho, pois o velho Moacir lhe era meio avesso.

Quando menino, Daniel sempre jogava bola na rua, e quando caía na casa do velho dos cachorros, e nenhum cachorro rasgava a bola, ele mesmo fazia o favor. Era ainda nítida sua tristeza de quando sua bola de natal com três dias de uso completou aquela trajetória sem volta. Mas o tempo passou e o fez esquecer, aparentemente também amaciou a ranzinza.

Pra falar a verdade, depois de um tempo, Daniel passou até a gostar do seu Moacir. O velho era alto astral, contava umas piadas sem graça, mas que alegravam o ambiente. E tinha os cães. Os cães que depois o jovem descobriu ser o motivo da antiga cólera, pois as bolas no quintal assustavam os bichos, eles mordiam e engoliam os pedaços, o que deixava o dono receoso.

O cara adorava aqueles bichos babões, brincava com eles como se fosse criança, todos trazidos da rua. Devia ter pelo menos uns dez. Só não tinha mais porque não tinha espaço, e ainda assim o homem lhe ofereceu uma garagem. E não cobrou nada.

Dan ficou inseguro de aceitar a oferta, num primeiro momento, mas o homem lhe insistia tanto que cedeu. Começou a perceber que tinha mais a ver com solidão que com afeição, ou solidariedade, e foi isso especialmente que o fez aceitar. E no início fora meio chato, pois na maioria das vezes que abria o portão, antes mesmo de ele entrar, seu Moacir já estava colocando ordem no canil, e sempre puxava papo antes de puxar o portão.

A casa tinha uma área grande, sala e uma cozinha embaixo. E em cima quatro quartos e dois banheiros. A escada descia por fora, como uma casa separada. Os telhados era inclinados demais, como que tentando imitar alguma arquitetura estrangeira – mas sem sucesso. Decerto uma curiosa obra de arquitetura. Os quartos agora todos vazios excetuando-se o dele.

Não deve ser fácil ter quatro filhos e nenhum deles ir te visitar. Aquele homem senil perdera a esposa muito novo, uns trinta e poucos, e criara as crianças sozinho. Mas hoje eram apenas os cães que lhe faziam companhia. Às vezes até aparecia um ou outro para lhe ver, a filha mais nova, que era um pouco mais sensível, mas morava em outra cidade, ou o outro, o altão, que depois veio a saber pelo velho que se chamava Samuel e era usuário de drogas. Vinha geralmente pedir dinheiro. Mesmo com tão poucas visitas, além do Daniel, ele sempre mantinha os animais no canil do fundo para, caso chegasse alguém, não sentisse incômodo pela bagunça dos bichos – foi o que ele lhe dissera.

Uma das coisas mais difíceis que Daniel achava era ignorar outra pessoa conversando, ou desligar um telefone na cara sem estar com raiva, ou virar as costas para um velho tagarela e solitário. Realmente impossível. O jeito era ficar olhando a boca frouxa e com poucos dentes se mover e concordar acenando a cabeça. Mas não teve muito jeito, o cara era legal, não diria engraçado, todas as piadas que contava ele já conhecia – e achava sem graça –, mas mesmo assim acabou se deixando cativar.

Chegou ao ponto de tomar café com o Moacir-dos-Cães quase toda manhã. Acordava, tomava banho, eventualmente deixava para tomar café no trabalho, mas sempre que o velho oferecia, e lhe contava o que tinha na mesa, ele o acompanhava. E nessa ficaram bons amigos.

Dessa vez ele tinha tentado abrir o portão e não tinha conseguido, provavelmente devido à ressaca do dia anterior. O calor o deixava mais zonzo ainda. E seu Moacir não descera como fazia todo dia, ao ouvir o barulho do portão. E nem depois quando o portão estava aberto. Quase o cachorro pintado com uma orelha caída saiu. Empurrou o portão com o pé e este bateu com força. Merda. Devia ter acordado o velho, se ele não desceu antes é porque não deve tá bem, precisa dormir. Tocou os cães para o fundo da casa, lá havia um grande canil com agua e ração, e era onde eles passavam a maior parte do tempo, só durante a noite vinham até a frente.

Talvez pudesse se dizer que a ressaca lhe causou aquela falta de atenção, mas não fora isso. Vinha calculando quanto precisaria economizar para comprar um não-sei-o-quê. Um não-sei-o-quê que nem ele mesmo saberia dizer depois, de tão distraído. Distraído que foi ao abrir o portão e ligar o carro, que quase não ouviu o ganido de baixo da roda quando arrancou.

Desceu do carro desesperado, não precisava nem ver para saber o que aconteceu, só torcia para não ser grave. Mas era. Não entendia nada de veterinária, e nem era preciso entender. O pintado, da orelha caída, arfava agora rapidamente, sem se levantar, com a barriga levemente deformada. Ele sabia que os órgãos internos tinham todos estourado. Ele sabia que o cachorro morreria, porque já tinha visto gente morrer assim.

Um calafrio lhe percorreu a espinha quando ouviu um estalo vindo de cima. Não importava o quanto o velho gostasse dele, aqueles animais eram como seus filhos. Seus olhos estavam mareados e suas mãos tremiam. O desespero lhe tampava a garganta fazendo com que cada gole em seco parecesse uma mão lhe sufocando. Uma gota lhe escorreu pelas bochechas e ele teve tempo de perceber que não era uma lágrima, mas uma gota de suor. Não ouviu mais nenhum barulho a não ser do canil.

Olhou novamente para Dálmata (o cachorro tinha pintas como um dálmata, e o velho que não entendia nada de raças, mas tinha gostado do filme 101 dálmatas, lhe dera esse nome), e pareceu que o vira-latas tinha morrido. Verificou se respirava e confirmou.

Engoliu mais uma vez em seco e olhou para cima. Nenhum movimento. As escolhas possíveis para aquela situação lhe embaralhavam a mente. O correto seria subir lá, acordar o velho e dizer o que tinha feito. O que era errado já tinha sido feito.

Mas e então. Por que não o fez? Não sabia explicar. Tem coisas que é mais fácil fazer quando não se está na situação. Pensou nisso umas duas vezes. Descartou a ideia. Olhou para o cão morto e pensou em tirá-lo dali, como se apenas ele tivesse fugido. Mas e daí? A culpa seria a mesma. Talvez sair e fingir ignorar o acontecido, talvez o velho achasse que o cão morreu de alguma doença. Tantos talvez. Não era o medo da ira do velho, não era medo de perder uma amizade de seis meses. Era aquele mesmo sentimento que o impedia de virar as costas quando as pessoas estavam conversando com ele ou desligar o telefone na cara de alguém de quem ele não estava com raiva. Como olhar de novo na cara do Moacir-dos-Cães. Não mais o Moacir-dos-Dez-Cães, mas Moacir-dos-Nove-Cães.
O último talvez venceu. Mas de outra maneira.

Ia sair e ignorar o ocorrido. Ia deixar o carro e ia soltar os cachorros. Ia ser como se nunca tivesse entrado ali naquela manhã.

Pôs Dálmata em uma moita no fundo do quintal e soltou os outros bichos. Alguns foram direto onde estava o seu parceiro e cheiraram, logo depois olhando para Daniel com aquele olhar canino acusador. Outros simplesmente ficaram no canil. Enquanto isso o garoto saía pelo portão tentando fazer o mínimo de barulho.

Quando trancou o portão que lembrou, talvez porque tenha ouvido, que o carro ficara ligado. Tentou todas as três chaves do molho duas vezes antes de conseguir entrar lá e desligar o veículo. Nesse ínterim, o portão ficara aberto e saíra dois daqueles bichos infernais. Gastou mais alguns minutos correndo atrás deles. Um vizinho que morava na casa do lado o cumprimentou e riu da situação. Ele só abanou a cabeça e pôs os cães para dentro, trancando o portão novamente. Seguiu para o trabalho à pé.
Chegando em casa, tomou um banho e subiu as escadas. Morava em uma casa de térreo, mas com uma varanda no andar de cima. Dessa varanda dava pra ver a casa da frente, do seu ainda-não-sei-se amigo. Geralmente uma das janelas do andas de cima ficava aberta, e todas as do andar de baixo, que não dava pra ver de sua casa. Mas naquele dia nenhum movimento. Ficou imaginando se o velho estava deprimido depois de ter encontrado o cão. Ficou imaginando se o velho tinha encontrado o cão. Mas é claro que tinha, merda, ele iria sentir falta.

Já era tarde e ainda não se vira ou ouvira nenhum movimento vindo do interior daquela casa. Na cabeça de Daniel era tudo sua culpa. Mesmo não sendo tão amigo do velho, não tinha como não se sentir com pena. Perder alguém, no caso um animal, sempre seria doloroso. Pensou na solidão do homem, em como os seus filhos – só conhecia o drogado e a menina – não lhe davam atenção, somente os cães babões… e agora sentia vergonha de pensar assim daqueles bichos. Sentiu culpa por Dálmata. Agora, depois de todo o dia com a cabeça ocupada no trabalho, começava a sentir culpa. Tinha matado.

— Você ‘tá estranho, filho…

— Só cansaço mesmo, fui para o trabalho à pé – só depois entendeu o que tinha dito. Desnecessário. Prendeu a respiração enquanto a mãe olhava em seus olhos, como que lendo cada um dos seus segredos, cada um, de toda uma vida, formando um bolo na sua frente, e por fim aquele cãozinho como a cereja.

— Dorme cedo então hoje, vê se não fica no computador até tarde.

Ele realmente tentou dormir cedo. Mas foi impossível. No meio da noite acordou e ficou olhando para a casa da frente. Os cães ganiam, com certeza sentindo falta daquele que ele assassinara. Mas o que incomodava era não ver nenhuma luz. Não tinha visto mais cedo e não vira então. A única imagem que via em sua frente era o velho abraçado ao seu cãozinho morto chorando. Sozinho durante a noite sentindo o filho que perdera.

Voltou para a cama e por volta das quatro cochilou. Um sono conturbado, daqueles que assombram a mente culpada, aqueles acompanhados de suor e da respiração ofegante. Acordou sobressaltado com um barulho de sirene, e quando abriu os olhos tomou um susto maior ainda com a sua mãe lhe olhando do batente da porta. Seus olhos arregalados estavam mareados, e estavam fixados no filho. Sua boca estava tão crispada como a mão. A boca abriu, mas os sons demoraram a sair. E quando saíram, não foram de pronto entendidos.

— Seu Moacir morreu.

Pronto. Matara o velho do coração. A boca se abriu em espanto, em dor pelo amigo perdido, mas também pela culpa. O peito se apertou e a respiração parou num instante que pareceu uma década.

— Morreu assassinado… – a mulher simplesmente desapareceu casa a dentro soluçando seu pranto. E Daniel ainda não tinha entendido direito o que acontecera.

Vestiu-se com pressa, e viu que perdera a hora de sair para o trabalho, o cabelo ainda ia em desalinho – como no dia que matara o cachorro – e o rosto amassado. Quando abriu o portão, seu olhar se cruzou com o do vizinho que ontem lhe cumprimentara e rira da peleja com os cachorros. Mas hoje não houve riso. O olhar lhe perfurou a mente. Era um olhar de indignação. Daniel não entendeu aquilo, e não viu também o homem, que se virou para entrar em casa.

As notícias foi ter a partir de alguns comentários que ouviu no aglomerado que se formava na porta da casa do finado Moacir, junto à dois carros de polícia, um outro veículo de carga que não reconheceu, e vários policiais. O velho tinha sido assassinado com uma faca no dia anterior, a casa estava revirada e aparentemente tinha sido levado dinheiro. Nada sobre um cachorro morto. Ainda via uma maca com um saco descer as escadas externas quando um vizinho, que conversava com um policial, apontou para ele.

O policial caminhou até ele e perguntou:

— É você o Daniel Aquino?

 

lucastamoios

 

5 thoughts on “Moacir-dos-Cães

  1. Olá, adorei seu blog. Gostaria de ler uma análise sua da letra de uma música que se chama “Música Inédita” da banda Pouca Vogal, por Humberto Gessinger e Duca Leindecker, ao meu ver a música consiste em uma crítica direta ao Cristianismo. Gostaria de saber o que você pensa. Antecipadamente agradeço.

    1. As músicas mais interessantes são as que escondem os significados mais múltiplos, e mais profundos, mas possuem uma mensagem clara, e a música inédita é isso. Ela começa com o que parece uma crítica à limitação humana, não poder criar algo que ainda não tenha sido criado, pensar algo que não tenha sido pensado, a finitude da vida em “vejo que os anos vão chegar”, e desponta um pouco de niilismo e da crítica à vida comum. Ele já emenda com um chamado então a alguma entidade que é antítese do humano, invocando sua presença, pedindo para que mostre seu poder, e que, se não o fizer “será que vamos saber?”.

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