Moacir-dos-Cães

O calor já queimava a testa e ainda eram seis da manhã. O jovem de cabelos escuros bagunçados já tentara duas vezes cada chave e nenhuma entrara, mesmo aquele sendo o chaveiro correto, às vezes só não entrava direito na primeira vez. Claque. O portão abriu com um estalo.
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Sombra do Medo

Ele sentiu aquele olhar atravessando suas costas durante toda a aula. Naquele dia era algo diferente, era algo mais malicioso que sempre. E o medo aumentara quando no horário do lanche não lhe levaram o dinheiro. Queria não tremer, mas suas pernas tinham adquirido o hábito. Cruzou-as de maneira pouco masculina na intenção de disfarçar o tique ansioso, escorregou a mão pelos cabelos longos mal-cortados de tesoura por sua mãe no mês retrasado.
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O mulato

Eu sempre ia ao mesmo bar, à mesma hora. Via mais ou menos as mesmas pessoas e sentava mais ou menos no mesmo lugar. A bebida era sempre a mesma, e acho que foi eu ter pedido uma diferente aquele dia que fez tudo acontecer. Talvez seja paranóia supersticiosa demais pensar nessas coisas, mas é o caos: tudo está ligado.
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Instante

Um dar de pestana simplérrimo, leve tremor de pálpebras que propaga pelo espaço, numa trajetória retilínea, porém caótica, acertando o alvo não como pluma que é, mas como flecha que deveria ser. E a dona dos olhos de cá, quem venho contar esse episódio, esfacela-se com o ocorrido, dá doses altas de adrenalina ao músculo cardíaco que, mais por hábito que por força, bombeia sangue às faces, corando-as.
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A mala

Olhei para aquela maleta no canto do meu pequeno cômodo e não resisti às fortes lembranças que ela me revolvia. Sentei à beira da cama e chorei até soluçar. Eu começara uma pequena arrumação no meu apertamento; aquele bicho da limpeza que às vezes nos incorpora, e nos faz jogar fora coisas velhas e sem utilidade; e a cada quinquilharia uma lembrança, lembrança de uma vida que foi e não me levou junto. … 

 

Quem são eles

O telefone tocou cedo e acordou Tomáz.

– Ô, Tom, ficou um negócio pendente de ontem, tem como ‘cê chegar mais cedo pra ajudar a gente?

O pessoal do turno da noite sempre fazia bagunça, tinha se acostumado. Levantou e vestiu seu terno rapidamente, passou no café antes de ir pro Escritório. Lá pegou a papelada e seguiu para o hospital. Foi a pé porque faz bem pra saúde, sabe como é, viver mais. Mentira. O hospital era quatro quadras além.
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Águas de março

As cataratas do iguaçu eram magníficas. Especialmente se vistas de dentro de casa. Casa bela, amarelinha, um galo no telhado, uma trepadeira na parede de trás. A visão daquele tanto de água o fez sentir um calorzinho na virilha, precisava ir ao banheiro. O calorzinho aumentava, mas pôde perceber a tempo que tudo não passava de um sonho.

Ainda bem que acordara. Bexiga em chamas. … 

 

O coração partido

De pé à porta, ela vasculhou a sala cheia, apenas com os olhos, por um lugar.

Eu, que então contava quatorze incompletos – mas já ignorava os cinco dias faltosos na contagem -, tinha no peito aquele sentimento que acomete os jovens descuidados. De tanto ler estórias de heróis, via em toda donzela aquela princesa em apuros; e a princesa agora estava à porta, com seu dilema de sentar … 

 

Um conto de Natal

Coçou o queixo enquanto pensava em sua próxima jogada, o tabuleiro que ganhara de natal ainda conservava o cheiro de novo, e também ansiava por andar na bicicleta nova, jogar futebol e mergulhar com o snorkel recém comprado. Tudo seria um pouco melhor se tivesse alguém pra brincar.
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